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Estudo analisa cobertura de jornal no caso Roger Abdelmassih

Nas reportagens, as mulheres eram tratadas como acusadoras. Mas, para o Ministério Público, elas eram vítimas.

Publicado: 10 Outubro, 2017 - 00h00

Escrito por: CNM CUT

Uma pesquisa realizada na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP analisou as reportagens do jornal Folha de S. Paulo sobre o caso Roger Abdelmassih, publicadas entre janeiro de 2009 e maio de 2015. De acordo com o estudo, o discurso jornalístico usado estava em desacordo com o discurso jurídico do Ministério Público Estadual (MP).

“O jornal se referia às mulheres como acusadoras. Porém, quem estava acusando era o Ministério Público. A Folha de S. Paulo somente começou a chamá-las de vítimas após Abdelmassih ser condenado e fugir do Brasil”, conta a autora da pesquisa, a jornalista Lieli Karine Vieira Loures Malard Monteiro.

Roger Abdelmassih, ex-médico especialista em reprodução humana assistida, foi condenado a 278 anos de prisão por cometer crimes contra a dignidade sexual de 37 pacientes. Posteriormente, a pena foi reduzida para 181 anos.

A Folha de S. Paulo foi escolhida por ter sido o primeiro jornal do país a publicar uma reportagem sobre o assunto e a cobrir todo o caso. Lieli analisou 48 reportagens veiculadas no caderno Cotidiano e dois artigos assinados. Também entrevistou duas jornalistas da Folha e algumas das mulheres vítimas do ex-médico. Conversou com profissionais do Judiciário, alguns deles envolvidos diretamente no caso, e pôde discutir, com esses especialistas, o conteúdo das reportagens publicadas pelo jornal.

Análise da cobertura
Lieli analisou as reportagens e dividiu a cobertura jornalística nas seguintes fases: investigação (de 9 de janeiro a 28 de fevereiro de 2009); indiciamento e condenação (24 de junho de 2009 a 24 de novembro de 2010); e fuga e captura (7 de janeiro de 2011 a 31 de maio de 2015). Segundo a pesquisadora, o discurso utilizado para denominar as mulheres coincidia com as palavras dos advogados de defesa.

“Quando se tem um volume grande de textos dizendo que essas mulheres são acusadoras, cria-se a ideia de que elas não são confiáveis. A imagem que se criou delas é condizente com a cultura do estupro, que sempre coloca dúvida sobre a palavra das vítimas. Quanto a Abdelmassih, foi apresentado como médico renomado”, destaca.

Para Lieli, o jornal se deu o direito de usar termos jurídicos de uma forma leiga e isso pode confundir o leitor, pois não esclarece questões jurídicas importantes. Com isso, formou-se uma falsa impressão sobre o que estava acontecendo, pois parecia que as mulheres estavam acusando injustamente.

“Quando a Folha não usa claramente os termos corretos, ela acaba fazendo o que não quer fazer: serve de tribuna, julga as mulheres. Não houve um pensamento crítico do que estava ocorrendo, nem contextualização dos estupros, nem questionamentos sobre como uma vítima se comporta, quais os danos psicológicos, ou mesmo como culturalmente as mulheres são educadas para não reconhecerem o estupro”, aponta. “Isso empobreceu a discussão porque se perdeu a dimensão do contexto social do estupro. Era algo que poderia ter sido feito dentro de um veículo de porte como a Folha de S. Paulo.”

Lieli considera ainda que a cobertura do jornal também perdeu a oportunidade de discutir as alterações da Lei de Estupro no Código Penal, ocorridas em agosto de 2009. “Antes, estupro era considerado ‘crime contra os costumes’: quando um homem constrangia uma mulher à conjunção carnal (penetração da vagina exclusivamente pelo pênis). Era preciso que os agressores fossem apenas homens e as vítimas apenas mulheres. Se a agressão fosse sexo anal, seria enquadrado como ‘atentado violento ao pudor'”, explica a pesquisadora. “Com a alteração da lei, estupro passa a ser considerado ‘crime contra a dignidade sexual’. O ‘atentado violento ao pudor’ deixa de existir e é incorporado à nova definição de estupro. As discussões envolvendo essas mudanças poderiam ter sido feitas, mas foram perdidas”, lamenta.

Da imprensa para o Ministério Público
Segundo a pesquisadora, o Ministério Público tomou conhecimento do caso por intermédio de um produtor da TV Globo, que procurou os promotores e mostrou um vídeo com a denúncia anônima de algumas mulheres. O MP começou a investigar o caso. Os promotores conseguiram o contato de algumas e conversaram com elas. Eles perceberam indícios que apontavam Abdelmassih como autor dos crimes. Foi quando o MP apresentou a denúncia e passou a acusá-lo formalmente. “Era, portanto, o Ministério Público que acusava Abdelmassih de ser o autor dos crimes e não as mulheres”, ressalta Lieli.

A promotoria convidava Abdelmassih para ir lá falar com eles mas, ou ele não comparecia, ou mandava o advogado em seu lugar. O processo chegou a desaparecer do Fórum e reapareceu tempos depois, dentro de um banheiro. “O promotor me contou que decidiu procurar a imprensa pois, sem ela, o caso não iria para a frente devido à gigantesca influência do médico. Porém, a TV Globo recuou e desistiu de dar a matéria. Então o promotor falou com a revista Veja, mas eles analisaram o caso e optaram por também não divulgar nada”, conta Lieli.

Foi nesse momento que o promotor foi procurado por uma jornalista da Folha de S. Paulo que, coincidentemente, havia recebido uma denúncia contra Abdelmassih e estava apurando a informação. Foram cerca de dois meses de apuração da Folha até a publicação da primeira matéria, em 9 de janeiro de 2009.

Depois da publicação da primeira matéria, a Folha de S. Paulo e o Ministério Público começaram a receber dezenas de ligações de outras mulheres contando que também foram vítimas do ex-médico. Quanto mais matérias eram publicadas, mais novas denúncias surgiam. “Segundo as jornalistas da Folha, a redação recebia e-mails com denúncias anônimas envolvendo Abdelmassih. E antes disso já existia um boato dentro da redação sobre um médico muito famoso de São Paulo que ‘cantava’ as pacientes”, finaliza.

A dissertação de mestrado Estupro na imprensa – O processo de trabalho de jornalistas e profissionais de direito na cobertura do caso Roger Abdelmassih pelo jornal Folha de S.Paulo (2009-2015), na perspectiva de estudos de jornalismo, da legislação e das práticas do Poder Judiciário e dos estudos feministas foi apresentada na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, sob a orientação da professora Alice Mitika Koshiyama.

(Fonte: Jornal da USP)