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Mesmo com Marco Legal da Primeira Infância, juízes impedem que mães encarceradas exerçam maternidade

Publicado: 04 Setembro, 2019 - 00h00

Escrito por: CNM CUT

A condição da maternidade, que deveria ser levada em conta para proteger direitos e garantias de mulheres previstos em lei, tem sido usada por juízes para reforçar a punição sobre as mulheres, como mostra o Diagnóstico da aplicação do Marco Legal da Primeira Infância para o Desencarceramento de Mulheres, relatório produzido pelo programa Justiça Sem Muros do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). A pesquisa, que será lançada nesta quarta-feira (4), a partir das 19h, no Sesc 24 de Maio, na região central de São Paulo, analisou como o Judiciário e os atores do sistema de justiça criminal têm aplicado o Marco Legal da Primeira Infância, promulgado em 2016, que ampliou a hipótese de prisão domiciliar para mães com filhos de até 12 anos ou portadores de deficiência e mulheres gestantes.

O que o ITTC apontou nos 601 casos analisados em diferentes etapas processuais, é que, na prática, “os magistrados não têm garantido esse direito e o Marco Legal ainda não tem sido incorporado efetivamente nas decisões do Judiciário”, segundo a advogada e integrante do programa Justiça Sem Muros do instituto Irene Maestro Guimarães, em entrevista ao jornalista Glauco Faria, da Rádio Brasil Atual.

Do total de 201 mulheres que estavam em audiência de custódia, o primeiro momento em que a defesa pode apresentar as especificidades do caso como a existência de filhos, 83% delas tiveram o direito à prisão domiciliar negado. Na análise da situação das 200 mulheres que estavam presas no Centro de Detenção Provisória de Franco da Rocha, 80% também tiverem seu pedido indeferido. Apenas quando se avaliam os 200 casos que chegaram às cortes superiores como o Supremo Tribunal Federal (STF) ou o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o número de negativas diminui para 38%.

Para a advogada, não é mero acaso que haja essa mudanças de padrão nas instâncias superiores. Irene levanta a hipótese de que nessa etapa que as informações ou características da mulher não ficam evidentes, ao contrário do que ocorre em uma audiência de custódia, por exemplo, quando o juiz fica frente a frente com a ré.  “Ela se torna mais abstrata, despida dessas características de raça, de classe”, avalia a integrante do ITTC apontando que quando os juízes não levam em conta seus próprios preconceitos, a formulação das decisões segue apenas a lei. “Os juízes fazem um julgamento moral sobre a maternidade a partir da sua visão de mundo, da sua realidade e compreensão do que é um ideal de mãe”, ressalta. “Eles entendem que o fato de cometer crimes é incompatível com a maternidade, mas não entendem que o cárcere é incompatível com a maternidade”, ressalta.

De acordo com Irene, em qualquer etapa processual, o perfil de mulheres encarceradas se repete, sendo em sua maioria jovens, negras, pobres e com baixa escolaridade e que, antes de terem o direito e garantia à proteção de seus filhos, já tinham um cotidiano de violações, privadas de direitos como saúde, educação, assistência social, entre outros. Além disso, o instituto também aponta que o Ministério Público nas audiências de custódia também se vale de argumentos morais, não previstos pela lei, para indeferir os direitos.

“É uma determinada maternidade, de determinadas mulheres que compõem o setor que é selecionado pela Justiça desde a abordagem policial até o julgamento ao processo penal. É a maternidade dessas mulheres especificamente que é julgada, deslegitimada, entendida como passível de menor proteção. Isso mostra que o Marco Legal vem sendo deturpado, porque é justamente a maternidade dessas mulheres que deveria estar sendo protegida, mas ela é julgada pelos juízes”, afirma a advogada.

Desestruturação familiar
De acordo com o ITTC, a própria guerra às drogas, como é chamada a estratégia no campo da segurança pública e da Justiça Penal que justifica o uso do aprisionamento para supostamente coibir a venda e o uso de substâncias psicoativas ilícitas, também é fundamental na lógica que leva às mulheres ao cumprimento da prisão provisória que, em sua maioria, entraram em conflito com a lei por cometerem atos sem violência ou grave ameaça, geralmente ligados à complementação de renda. O tráfico de drogas encarcera a maior parte das mulheres hoje, cerca de 62,5% segundo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen).

Irene ressalta, no entanto, que o uso excessivo dessas prisões não apenas lota o sistema como impõe uma série de violações de direitos como tortura, precariedade, impondo o estigma da passagem pelo cárcere. “Tudo isso se reforça com as mães sendo afastadas do convívio com seus filhos, então a gente vê que a questão das drogas é um pilar bastante importante para reprodução e manutenção desse encarceramento em massa que vivemos no Brasil”, analisa a advogada, acrescentando que essas questões corroboram para a desestruturação familiar.

Segundo o Diagnóstico da aplicação do Marco Legal da Primeira Infância, nas audiências de custódia, das 133 mulheres que afirmaram ser mães, 84 delas eram as únicas responsáveis pelo cuidado com os filhos, seguidas de 14 cuja responsabilidade era compartilhada com a avó das crianças, mãe da mulher, enquanto outras sete afirmaram que mulheres próximas como irmãs e tias ajudam a cuidar das crianças. “São as mulheres as responsáveis pelos cuidados domésticos e familiares, e o juiz, ao negar o direito à prisão domiciliar, acaba também transferindo a responsabilidade pelo cuidado com os filhos para outras mulheres que não fazem parte do processo, não foram ouvidas, que sequer estão lá para dizer se querem ou podem cuidar da criança”, critica a integrante do ITTC.

(Fonte: Rede Brasil Atual)